Mulheres que voam e inspiram

Um bate-papo com Elisa Eisenlohr, Marcella Uchoa e Raquel Venceslau

08 de março de 2022 - Por Guilherme Augusto

Tradicionalmente, 8 de Março é um dia de homenagens, flores, abraços e congratulações. Mas isto não basta. É preciso criar uma continuidade.

Nós trazemos uma entrevista especial, com mulheres que são referência no voo livre nacional. Conheça (e inspire-se com) as histórias de Elisa Eisenlohr, Marcella Uchoa e Raquel Venceslau.

Vamos começar pelas apresentações. Elisa tem 42 anos, é gestora de direitos autorais, vive no Rio de Janeiro e possui um relacionamento longo e duradouro com voo - e com direito a títulos nacionais, inclusive.

Moradora de Poços de Caldas (MG), Marcella Uchoa consagra sua vida integralmente ao parapente. Da dedicação vieram frutos como recordes mundiais, títulos brasileiros e excelentes resultados em competições no exterior. Tem 34 anos.

Por fim, Raquel. Ela mora em Curitiba e é uma gestora do esporte, trabalhando nos bastidores do voo livre há anos. Aos 35 anos, também é competidora e, profissionalmente, gestora de projetos.

Bora pras entrevistas?

Começando pelo início. Conta pra nós: de que forma iniciou a sua história com o voo?

Elisa: Começou na pré-adolescência, quando meu pai me apresentou uma asa delta e eu enlouqueci, sempre fui apaixonada por natureza. Ali pelos 16 eu comecei a fazer aulas, depois parei para morar no exterior e, quando voltei ao Brasil decidi morar em São Conrado (RJ). Aí foi dito e feito: me mudei e comecei a voar. 

Marcella: Minha primeira experiência no ar foi um salto duplo de paraquedas, em 2010. Curti demais, mas era muito caro para praticar. Logo depois conheci a galera do parapente aqui de Poços, que me ajudou com o curso, e me aproximei do esporte. Foi amor ‘ao primeiro voo’ (risos). Comecei a voar mesmo em 2012 e a me dedicar em 2016, já com o objetivo de bater o recorde mundial - o que rolou dois anos depois.

Raquel: Eu voo há 5 anos, comecei no Morro do Cal, na região metropolitana de Curitiba. Iniciei nos campeonatos logo que me formei e esta é a modalidade que me dedico até hoje.

Elisa começou a namorar com o voo ainda adolescente. Depois vieram títulos, a oportunidade de conhecer pessoas incríveis e experiências fantásticas com a natureza

O que você destaca na sua carreira de piloto?

Elisa: O voo é super importante pra mim - conheci meu marido através do voo, inclusive - e sou super feliz pelas oportunidades que o voo trouxe. Voei com aves lindas (como o Urubu-Rei) e nos Alpes, participei do Campeonato Brasileiro e em 2017 fui campeã nacional. Também fizemos o Saia Para Voar, um encontro só para mulheres que foi super incrível e teve uma repercussão enorme. E ainda tive a experiência no Sertão, em 2021, onde já no primeiro dia voei mais de 250 km. Depois estraçalhei meu recorde pessoal, com mais de 360 km, foi demais. Hoje estou em primeiro lugar no XContest no Feminino, com os 6 maiores voos do mundo registrados.

Marcella: Ah, aconteceram muitas coisas legais. Em 2018 eu realizei o sonho de quebrar o Recorde Mundial, cravando 3 novas marcas. No Brasileiro foram 3 títulos e um top10 na Geral, enquanto no PWC eu faturei duas etapas, com um 19ª lugar na Open em 2021. E rolaram coisas em outras áreas, também. Uma experiência que eu curti muito foi dar palestras em escolas públicas de Poços, inclusive na área rural, falando do esporte pros alunos. Foi legal demais.

Raquel: Comecei a competir cedo, logo que me formei. A minha intenção na época era evoluir tecnicamente para poder ir melhor no cross, porque naquele tempo eu não me via tendo perfil competitivo… até que participei da primeira competição, um estadual em Japira (PR). De lá para cá nunca mais parei de competir! 

Já fiquei no top10 da Open nos estaduais do Paraná e de São Paulo, mas meu foco sempre foi o aprendizado. Este será o primeiro ano que irei competir uma temporada inteira sem trocar de categoria, na Open. Também trabalho há quatro anos na diretoria da FVLP, onde sou a atual presidente, e fui convidada para compor a Diretoria Técnica da CBVL em 2022. A realidade é que o esporte sobrevive dessa galera que acredita num ideal e dedica o seu tempo pra que as coisas realmente aconteçam.

É fácil entender a razão da alegria: carioca foi P2 na Serial do X Mantiqueira, além de P3 na Open e P1 na Serial da Copa Rio 



E como era o número de mulheres pilotos quando você começou a voar?

Elisa: Quando comecei era pouquíssimas mulheres e uma que me marcou muito foi a Claudinha. Uma mulher maravilhosa voando cross de 150, 160 km todos os dias. Nossa, achei o máximo! Virei fã dela pela atitude e independência.

Marcella: Nossa, tinha muito menos. Acho que estamos avançando muito neste sentido graças a iniciativas das próprias meninas, como o Saia Para Voar, Meninas do Céu, Aladas do Rio e outros movimentos. Isso incentiva quem já voa a continuar e aproxima novas pessoas do esporte.

Raquel: O Paraná tem tradição em ter muitas mulheres no esporte. Claro que ainda somos numericamente menores, mas tenho muito orgulho em ver tantas se dedicando e colhendo os frutos do investimento no esporte. Hoje creio que temos cerca de 40 pilotos ativas.

Se até bem pouco tempo Marcella acompanhava de perto as decolagens de outras brasileiras, hoje ela é quem ascendeu ao posto de principal referência feminina nas competições. No currículo, três títulos no Brasileiro, duas etapas do PWC, 3 recordes mundiais...

Como é integrar um esporte (ainda) majoritariamente masculino?

Elisa: Olha, as vezes é maravilhoso e em outras é uma m**** (risos).

Marcella: Hoje eu tô acostumada, mas no início ficava ‘meio assim’ por ser a única na rampa e nos outros lugares. Sabe, acho que tem poucas mulheres no esporte por uma questão muito profunda, que vai além do próprio machismo. É algo cultural, onde as meninas aprendem desde pequenas que não podem fazer certas coisas, que não conseguem, que não são capazes. Isso é um movimento que a gente precisa combater.

Raquel: Na verdade nada, pois nunca me coloquei num lugar onde o meu gênero descrevesse as minhas atitudes ou aonde eu posso chegar. Porém, percebo que a minha postura ainda surpreende algumas pessoas que têm aquela visão feminina limitada e antiquada. Nunca me senti inferior ou aceitei qualquer estereótipo e não gosto quando me colocam como representante de uma categoria, desconsiderando toda diversidade de perfis das mulheres que voam ao rotular apenas pelo gênero.

O machismo existe em todas as esferas sociais e isso se reflete obviamente no esporte. A minha postura diante disso é a mesma que eu adoto na minha vida, a de não usar isso como muleta e seguir tentando fazer um bom trabalho, respeitando as minhas características individuais.

Moradora de Poços de Caldas (MG), Marcella já voltou da Europa com boas memórias em várias ocasiões. No ano passado, por exemplo, faturou o PWC Sérvia na categoria Feminino e foi P19 na geral



Tem alguma parte boa de ser minoria no voo?

Elisa: Sinceramente, não vejo muitas partes boas. Infelizmente, isso não traz benefícios.

Marcella: Difícil, né? Acho que a ajuda para carregar os equipamentos (risos).

Raquel: Nunca é bom estar na minoria, e é por isso que as mulheres recebem mais destaque. A realidade é que a imagem feminina vende mais como consequência do próprio machismo. No esporte isso atrai mais visibilidade nas mídias sociais, patrocínios etc. e isso pode ser usado de forma inteligente.

Raquel não ficou satisfeita em 'apenas' voar e logo se tornou uma gestora do esporte. Hoje, é presidente da Federação de Voo Livre do Paraná e membro da diretoria da CBVL

Qual é a parte ruim?

Elisa: As pessoas têm um preconceito antes mesmo de te conhecer e geram umas expectativas absurdas. Como se uma voadora mulher não pudesse ser mediana, sempre ter que ser foda, mas nunca acreditam que você está buscando um resultado nas categorias gerais - sempre apenas na Feminina. E fora o machismo, obviamente.

Marcella: Ah, tem alguns episódios chatos que realmente rolam. Uma coisa que me incomoda muito é o machismo disfarçado de elogio, a história do ‘nossa, você voa que nem homem’. Isso é um machismo tremendo, ainda que o cara não perceba o que está fazendo. Por que não pode dizer ‘nossa, você voa como um bom piloto’ independente do gênero dele?

Raquel: Acho que toda entrevista que eu dei até hoje foi sobre ser mulher no esporte ou sobre representatividade. Entendo que se esse assunto ainda é tão presente e porque ele ainda é necessário, então por esse motivo sempre vou estar disponível para falar sobre, mas confesso que é cansativo. É como se o meu gênero viesse antes de tudo o que eu faço e às vezes isso é frustrante, diante de tantos outros assuntos do esporte que poderíamos falar.

Raquel já perdeu a conta de quantas entrevistas deu falando sobre o mesmo tema, 'como é ser uma mulher no voo'. "É como se meu gênero viesse antes de tudo o que faço, e isso é frustrante"

Conta pra gente: qual é a sensação de chegar a um pódio ou vitória, competindo com outras mulheres e tantos homens?

Elisa: Eu sempre voo tentando o meu melhor, este é o meu objetivo, e quando ‘o meu melhor é o melhor de todos da cateoria’ é incrível. Isso rolou na Serial do XMantiqueira por exemplo é foi maravilhoso, uma grande realização

Marcella: É muito bom! Mostra pra mim mesma que sou capaz, que posso competir de igual para igual com qualquer piloto, independente se homem ou mulher. Pra mim o que o esporte tem de melhor é o lance de se superar a cada dia e chegar ao topo de uma competição é ver o crescimento se concretizar numa vitória.

Raquel: Eu ainda estou longe de onde gostaria neste sentido, mas todas as vezes em que fiquei bem colocada em uma prova o sentimento é que toda a jornada valeu a pena. Eu fico muito feliz, mas tenho consciência que as próximas frustrações vão chegar e só através delas é que eu vou conseguir subir o próximo degrau. Sobreviver a isso é o grande desafio, na verdade.

Como o esporte pode evoluir na questão 'número de mulheres pilotos'? Quais são os principais desafios?

Elisa: Acredito que toda iniciativa é válida, afinal este ainda é um ambiente muito masculino e que acaba sendo quase hostil às mulheres. Ter um ranking específico para as mulheres é um exemplo de algo básico, porque isso incentiva o ingresso de novas competidoras, facilita acompanhar sua evolução no esporte e ajuda até em questões como patrocínios e incentivos, como o Bolsa Atleta. E ainda tem os eventos, super importantes, como o Aladas do Rio, Voe Guria e tantos outros.

Marcella: Eu gosto muito desses movimentos das próprias mulheres, como os que já falei. Além disso, acredito muito na categoria feminina, ela é uma ótima forma de acesso para as meninas no voo. Ainda que tenha poucas competidoras por enquanto, a categoria precisa continuar para incentivar novas pilotos.

Raquel: Essa é uma pergunta que eu sempre faço e a resposta é ampla. Existem algumas políticas de incentivo, como por exemplo as vagas femininas para acesso aos campeonatos mais disputados, como no Brasileiro, PWCs, etc, desde que haja um critério técnico mínimo de corte. Além disso, a categoria feminina nos eventos regionais também pode ser vista como uma forma de incentivo. Ainda, há vários movimentos de mulheres dentro do esporte que podem servir de apoio. Mas entendo que o ponto principal ainda é a informação e nesse sentido estamos longe do ideal. Chega a ser contraditório como um tema sempre tão discutido ainda é tão distante da compreensão da maioria.



Diz aí: quem foi (ou é) sua inspiração feminina no esporte?

Elisa: Meus amigos são meus ídolos. A Claudinha (Cláudio Ribeiro) é uma inspiração até hoje, porque espero amadurecer no esporte como ela. A Domenica (Tcacenco) também me inspirou muito, porque era a única mulher com equipamento avançado quando eu comecei. Ainda teve a Kamira Rodrigues e minha amiga pessoal, Deanne Branca. E hoje não faltam nomes, né? A Raquel Canale - que faz hike and fly -, a Marcella Uchoa - que voa hiper bem - e várias outras.

Marcella: Quando comecei minhas principais referências eram a Domênica, a Camila, Claudinha, grandes nomes do Brasil. Hoje a minha maior é a Meryl Delferriere, minha ‘ídola’. É lindo ver uma mulher com vela S voando tão bem quanto os melhores do mundo! Ela ficou em P2 no PWC Roldanillo, que rolou este ano na Colômbia. Ela foi a primeira mulher a subir no pódio na geral justamente no evento mais competitivo que já vi na vida.

Raquel: Eu tenho várias referências e elas independem de gênero. Entre as mulheres, a Marcella certamente é a referencia nacional, por toda sua dedicação, conquistas e por saber aproveitar muito bem as oportunidades que teve.

Para finalizar, quer deixar um recado pra galera?

Elisa: Eu valorizo muito todo o espaço dado para as mulheres dentro do esporte, mas espero que esta preocupação vá além do dia 8 de Março, quero que faça parte dos planos de gestão das entidades. E também vou incentivar todo o mundo a voar, claro. Isso é maravilhoso, uma experiência fantástica que as pessoas merecem conhecer mais a fundo.

Marcella: Claro que sim! O recado é: mulherada, incentivem outras mulheres, sejam elas amigas ou conhecidas, a se aproximar do esporte. Que quem já voa, voe mais, e que muitas tenham a oportunidade de conhecer o voo livre.

Raquel: Sim! Gostaria de agradecer aos amigos que o voo livre me trouxe, que são tão generosos ao me ensinar tanto, sempre. Deixo um recado na forma de incentivo a todas as mulheres ligadas ao voo livre, que acreditem no seu potencial, respeitem suas características individuais e conquistem o espaço que é de vocês!

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